E a seguir, o roteiro definitivo usado na apresentação. Boa leitura.
QUANDO O LEQUE SE ABRE...
(Adaptação do Conto Nº 2: Bandeira Branca, de Luís Fernando Veríssimo)
Ligo o rádio. A estação faz uma homenagem às marchinhas clássicas de carnaval. O que toca? “Bandeira branca, amor, não posso mais pela saudade...”. Dos meus lábios lentamente irrompe um sorriso, daqueles sutis, que se revelam quando nos lembramos de algo bom. Ah, meus carnavais...
Faz frio. Escuto o som de marchinhas de carnaval se aproximando. Pela rua de casa desfila um bloco de foliões. Vou até a janela conferir. Hoje as fantasias não são mais adereços tão necessários assim, mas ainda existem alguns foliões insistentes! São esses os que me fazem lembrar meus longínquos carnavais, no interior, nas matinês do único clube da cidade. Minhas memórias retornam aos poucos, como o abrir de um leque, prestes a revelar a intensidade das minhas lembranças mais remotas...
Fecho o s olhos. Tambor. Serpentina, confete, tambor. Apito, chocalho, poeira, gritos, mais tambor, mais gritos, gritos altos, cores embaçadas. Multidão. O montinho de confete. Um leque... O que há por trás desse leque? Um pouco desfocada, calma, sim: lá está ela. Sorrindo um sorriso não daqueles abertos e cheios de dentes, mas daqueles sutis, como se eu não merecesse toda a alegria que ela continha dentro de si, entregue de bandeja num abrir de lábios. Seu nome era Janice.
Preciso de alguns minutos para digerir o turbilhão de lembranças tão encrustadas em minha cabeça que mesmo o maior porre de conhaque não resolveria. Medidas paliativas nunca solucionaram os problemas daqueles que perderam as ilusões tão cedo na vida, como eu. O melhor remédio eu desconheço; talvez não queira encontrar. As memórias daqueles carnavais longínquos são meu veneno e antídoto. Enervam minha alma, mas quando desaparecem me devolvem ao mundo real como um soco no estômago. Não sei se é apenas “carranquice”, obra da idade, mas os anos são ainda mais implacáveis para aqueles que vivem do passado - seres humanos presos em uma época mágica onde tudo parece cercado de possibilidades infinitas e o tempo é mero capricho, uma convenção, de fato.
A maior história de amor da minha vida começou pelo início, por mais óbvio que pareça. Nem sempre é assim. Éramos crianças, descompromissadas e despidas de máscaras como toda criança deveria ser, pois são os adultos e os velhos que precisam se esconder sob as máscaras. Não me lembro precisamente qual era o meu costume; decerto era aquela fantasia surrada de tirolês que minha mãe insistia em me vestir nos primeiros carnavais. E Janice... Janice era uma odalisca cintilante, cujos pequenos brilhos nos adornos da roupa formavam o complemento perfeito para os pequenos olhos amendoados da menina que foi minha arquiteta companheira em meu primeiro montinho de confete. Cúmplices, sequestrando confetes do chão e das mãos dos desavisados para montarmos nossa pequena montanha de papel picado. Para nós, pouco importava o tambor, as serpentinas, o apito e toda aquela multidão...
- Píndaro. Disparei meu nome.
- Píndaro? Que nome estranho. Janice respondeu.
Janice era uma menina cheia de mistérios e rara beleza. Além dos olhos amendoados e pequenos, que praticamente fechavam-se por completo quando abria o sorriso, tinha um charme nesses olhos... A pele alva e lisa cheirava a pêssego maduro. Os cabelos longos e leves adornavam aquele rosto de anjo caído e os gestos eram de uma Madame Butterfly. Tudo tão harmoniosamente montado junto, na sua figura, como um quebra cabeça divino que me roubou os olhos desde o primeiro instante.
Durante os meses do ano Janice era apenas um refúgio na minha cabeça; um canto quente e acolhedor onde eu poderia me reconfortar de tudo o que me afligia. Ela morava em outra cidade e o que a trazia aos nossos carnavais eram as visitas à tia, que era sócia do clube onde os bailes aconteciam.
Eu lembro de passar o ano inteiro torcendo para que nossas fantasias combinassem. Assim, formaríamos um par. O pior é que nunca dava certo.
Ela, odalisca. Eu tirolês.
Ela, egípcia. Eu repeti a fantasia.
Ela, índia americana. Eu, legionário romano.
E nesse desencontro de figurinos, passamos bailes e mais bailes nos encontrando, fazendo montinhos de confete, depois entrando no cordão e nos perdendo um do outro. Encontrá-la já fazia parte do meu carnaval, mas nunca fomos um par. Até que um dia, quando eu tinha... O quê? Uns treze ou quartoze anos, não lembro exatamente- a memória já não é mais minha aliada- em um carnaval aconteceu o que eu tanto esperava:
Ela, bailarina espanhola. Eu, toureiro...
Éramos finalmente um par! Um par perfeito! Algo aconteceu quando eu segurei a sua mão naquele dia. Eu sabia que aquele seria o dia do meu primeiro beijo. E era o que eu queria. Janice...
Ah, a magia daquele carnaval ainda ecoa na minha alma...
Foi nesse dia que eu finalmente conheci o tal fundo do ginásio, onde os amigos mais velhos levavam as meninas para beijar. Eu segurava em sua mão, levando-a como a uma namorada. Meu coração batia descompassado, veloz, acelerado, quente. Eu, de certo, estava rubro. Mas prosseguia, indo para nosso destino com minha bailarina espanhola.
Antes de chegarmos ao fundo do ginásio, ela tremia inteira:
- Você está tremendo. Está com frio?
Ela fez que sim com a cabeça. Tirei minha capa de toureiro e cobri seus ombros. Ela sorriu para mim. Continuei a levá-la pelas mãos, tentando acalmar as batidas do meu coração que insistiam em acelerar de forma violenta dentro de mim. Quando encostasse meu peito contra o dela, durante o beijo, ela certamente notaria tal agitação.
Chegando ao famoso fundo do ginásio, minha decepção não poderia ser maior: apenas um gramado, com algumas árvores e alguns casais. Um silêncio sepulcral; lá não se conversava. Lá, se beijava. Só dava para ouvir as marchinhas com um som abafado, um pouco surdo, que vinham de dentro do salão.
-Vem! Chamei Janice.
Ela veio.
Nos beijamos muito aquele dia, beijos curtos e longos. Ás vezes, apenas nos olhávamos. Depois nos beijávamos de novo.
Para as mães não perceberem o sumiço e não nos encrencarmos, voltamos para o baile, mas eu não queria. Queria ficar com Janice até o próximo baile. Até o próximo carnaval. Até o resto da vida! Queria roubar Janice para mim.
-Me dá uma coisa sua! Pedi.
-Por quê?
-Para eu ter uma coisa sua...
-O leque!
Ela ergueu o braço até a altura dos olhos abriu o leque, depois o fechou e o entregou.
-Guarda para sempre! Ordenou.
Obedeci...
Revê-la apenas em fevereiro era como abrir um presente fechado que ficara guardado durante muito tempo e me surpreender sempre com o que encontrava. O tempo passava e de repente lá estava ela: corpinho formado, de moça, a voz empostada, rindo alto e à vontade.
Eu a vi logo que cheguei. Para mim, não era difícil identificá-la no meio da multidão. Me lembro como ela sorria, os olhinhos quase fechados... A maciça companhia masculina que a cercava me desencorajou de tentar qualquer tipo de aproximação. Me recostei em um pilar para ao menos observá-la, olhar para ela... Guardar sua imagem até o próximo carnaval... Quem sabe no próximo baile?
É a última lembrança que tenho de Janice.
Eu, também crescido, espinhas na cara e cabelos mal penteados era um adolescente tolo tentando encontrar num copo de “guaraná clandestino” as ilusões roubadas pela saudade do meu amor de carnaval. Já tinha 15 anos e Janice, no entanto, já não era mais objeto exclusivo de meus sonhos e lamentações: linda e desenvolta, chamava a atenção de outros “tiroleses” no baile. Mas eu não era mais o tirolês. Depois de alguns bailes, a fantasia não me servia mais e eu virara o brasileiro. Ela, a “Bávara tropical”, segundo a própria. Naquela noite, Marcelão, meu amigo na época, fornecia o que eu chamava de “tapa-buracos d’alma”: gim para misturar com guaraná. Péssima ideia, coisa de moleque. Algumas horas mais tarde eu rebatizaria o drink de “desentupidor de almas”...
Bebendo descompassadamente e tentando me esquivar de Janice e suas irritantes companhias masculinas, lamentava por não ter coragem o suficiente para me declarar para ela. Cambaleante, resolvi me retirar do baile como um empregado demitido, pela porta dos fundos. Quando estava, tortuosamente, alcançando a saída do clube, senti alguém me agarrando pelas mãos:
- Olha o que está tocando.
Era Janice, que viera ao meu alcance, sorriso aberto e as trancinhas de bávara pendulando conforme seus pés tocavam o chão. Era “Bandeira Branca” que estava tocando, a clássica marchinha que não ouvimos mais nos carnavais contemporâneos, e que embalara todos os meus bailes no clube com Janice. Senti meu rosto ferver, um tanto pela vergonha outro tanto pelo álcool, e a deixei me arrastar de volta ao salão. “Bandeira branca, amor, não posso mais pela saudade...”. Eu tentava me equilibrar e não pisar nos pés de Janice, mas meu estado alcoólico deplorável não ajudava. Respirei fundo e deixei a dança acontecer. Repousada sobre meus ombros, eu sentia sua respiração quente e suave me fazer carinho no pescoço. Seu corpo colado ao meu formando uma única unidade, o tempo lentamente parando... As pessoas sumindo... A gritaria emudecendo... As luzes se apagando... Naquele salão só havia espaço para mim, Janice e o nosso amor.
Durou o tempo em que a música tocou. Janice se despediu de mim e aquele foi o último carnaval em que nos encontramos. E o último carnaval ao qual eu fui pelo resto da minha vida.
Eu já não frequentava mais aquela festa, nem voltava para minha cidade no interior. O carnaval tem data para começar e terminar. Entretanto, Janice não morreu para mim. O que é transitório dentro de mim se torna infinito. A nossa dança nunca terminou e a despedida, nunca aconteceu.
Tentei inutilmente reencontrar Janice em outras mulheres, em outras odaliscas, bailarinas espanholas e bávaras tropicais, mas nunca fui feliz como naquela dança. O tirolês-toureiro-brasileiro hoje é um velho solitário de cabelos grisalhos, saudoso de um passado distante, esgotando o resto de memória que me ainda tenho, vivendo delas para adoçar um pouco a amargura da consciência de uma vida mal vivida.
Janice continua intacta na minha lembrança. Linda; de odalisca ou egípcia, de índia americana a bávara tropical: todas são minhas, todas são Janice. Vivo a memória de uma foliã diferente a cada dia e assim passo meu tempo, enquanto tempo ainda me resta... Porém, meus dias de maior delicadeza são os que vivo com minha bailarina espanhola, com a cabeça repousada em meu peito, sua respiração acarinhando meu pescoço, as pessoas sumindo, a gritaria emudecendo, as luzes se apagando... Bandeira Branca, amor. Não posso mais pela saudade que me invade, eu peço paz...