quinta-feira, 10 de novembro de 2011

BASTIDORES -- TRÊS EM UM

Segue a versão da história a partir do ponto de vista de Janice. Boa leitura.

Ah, Bandeira Branca, meus carnavais... Quantas memórias queridas!
As fantasias dos passados bailes de carnaval, tornaram-se máscaras. Por isso posso dizer que as continuo usando, não é? Quem não usa?
Hoje é quarta feira de cinzas. O carnaval acabou, o cordão já passou e os bêbados já estão sendo expulsos das ruas. A ordem precisa ser reestabelecida!
E eu estou aqui dentro dessa casa, protegida por essas paredes contra qualquer resquício dos foliões.
Me lembro que, quando criança ía sempre para o interior, visitar a tia Úrsula. Passava alguns dias em sua casa, justamente no carnaval. Lembro dela como uma mulher muito alegre e cheia de vida. Não perdia um baile de carnaval e sempre me carregava junto para as matinês. Era questão de honra fazer para mim todos os anos, uma linda fantasia que ela mesma costurava com uma habilidade impressionante em sua velha máquina de costura. E eu sempre tinha a fantasia mais linda do baile.
Nesses bailes, em que fugia da mãe para fazer montinhos de confete caídos no chão, espalhados como milhares de gotas de chuva por todo o salão, eu me lembro de muita coisa. Lembro como era feliz aquela inocência remota que nos abandona depois de uma certa idade. Lembro dos primos que íam para trás do ginásio para beijar as meninas. Lembro da primeira vez que fui também. Tinha as meninas da rua, aquela que era muito minha amiga... como era mesmo o nomes dela...Cassandra? Não!...Alessandra? Não, era um nome diferente... Paloma?
Tinha um menino, desse definitivamente não vou lembrar o nome. Não só porque sou péssima em guardar nomes e a idade já não favorece mais, mas porque ele tinha realmente um nome muito peculiar. Como ele mesmo era. Ao invés de entrar no cordão e pular carnaval como todo mundo, ele era meu arquiteto companheiro nos montinhos de confete. Foi assim que nossas mães se conheceram. Vieram nos puxar pelos braços e nos enfiaram no meio do cordão, onde sempre acabavamos nos perdendo um do outro. Isso foi há muito tempo atrás, muito tempo... Quantos anos seriam? Cinquenta, sessenta anos atrás? Não me lembro mais. O nome dele era até um pouco engraçado, mas mais velha e madura, um dia por curiosidade fui procurar o significado numa enciclopédia e descobri que era o nome de um poeta romano ou grego... nao me lembro mais. Mas definitivamente me lembro que começava com a letra P, por isso é assim que eu o chamo até hoje em minhas lembrancas.
Ele morava na cidade e não perdia um baile de carnaval. E como minha família ía sempre visitar a tia Úrsula, sempre nos encontramos nas matinês. Desde criancinha!
 Eu ficava o ano todo pensando na minha fantasia e torcendo para que ela combinasse com a dele e assim, nós formaríamos um par. Pode?
O pior é que nunca dava certo.
Eu, bailarina. Ele tirolês.
Eu, egípcia. Ele repetiu a fantasia.
Eu, índia americana. Ele, legendário romano.
E nessa desencontro no figurino, passamos bailes e mais bailes nos encontrando, fazendo montinhos de confete e depois entrando no cordão para ir atrás do trio. Encontrá-lo já fazia parte do meu carnaval, mas nunca fomos um par. Até que um dia, quando eu tinha... o que? Uns treze ou quartoze anos, não lembro exatamente (minha memória já não é a mesma...) aconteceu o que eu tanto esperava:
Eu, bailarina espanhola. Ele, toureiro...
Éramos finalmente um par! Um par perfeito! Algo aconteceu quando ele segurou a minha mão naquele dia. Eu sabia que aquele seria o dia do meu primeiro beijo. E era o que eu queria.
A magia daquele carnaval ainda ecoa na minha alma...
Quando ele finalmente me beijou, no começo achei estranho, esquisito. Quis desistir, mas quando eu coloquei as mãos nos seus ombros com a intenção de empurra-lo, ele me abraçou mais forte e me rendeu irremediavelmente. Cai em seus braços, já não importavam as mães.
Tia Úrsula viu. Veio chamar a atenção para sairmos dali:
-Se uma daquelas duas loucas pegam vocês, nem sei!
 Foi nesse dia que eu finalmente conheci o tal fundo do ginásio. Ele segurava minha mão, me levando como a uma namorada. Meu coração batia descompassado, veloz, acelerado, quente. Eu, de certo, estava rubra. Mas lá estava eu, indo para o fundo do ginásio com o meu toureiro. Lembro da capa vermelha, do chapéu engraçado, lembro de cada coisa e me esqueço de tantas outras!
Quando chegamos ao fundo do ginásio, eu tremia inteira:
- Você está tremendo. Está com frio?
Eu fiz que sim com a cabeça; não queria que ele soubesse que era o primeiro. Eu era da capital.  E para os meninos, toda garota da capital já tinha que ter beijado alguém. Menos eu. O P era o menino perfeito para ser meu primeiro beijo, por isso eu o escolhi. E as fantasias...  Finalmente um par!
Chegando ao famoso fundo do ginásio, minha decepção não poderia ser maior: apenas um gramado, com algumas árvores que alguns casais usavam como apoio durante os longos beijos. Um silêncio sepulcral; lá não se conversava. Lá, se beijava. Só dava para ouvir as marchinhas com um som abafado, um pouco surdo, que vinham de dentro do salao. P continuou a segurar minha mão enquanto examinava o lugar, certamente procurando um canto para me levar. Me lembro que pensei: "Nossa! Ele já deve ter trazido várias garotas para cá...Certamente vai notar que eu não sei beijar!". Pensava nisso o tempo todo até que senti a mão dele me puxando:
-Vem!
Fui.
Nos beijamos muito, beijos curtos e longos. Ás vezes, apenas nos olhavamos. Depois nos beijávamos de novo.
Para as mães não perceberem o sumiço e não nos encrencar com as malucas, voltamos para o baile, mas eu não queria. Queria que aquele momento durasse por toda a eternidade. Estava esfuziante! Vibrante! Tinha dado meu primeiro beijo!
Ao voltar para o baile, ficamos brincando de disfarçar. Foi um carnaval inesquecível para mim. Talvés apenas mais um para ele, mas para mim, nascia um novo tempo.
Aquele beijo me deu confiança. Já não precisava temer beijar os meninos do colégio. O primeiro com quem eu fiquei foi o Beto. Depois, namorei o Henrique, o Lucas, o Leo...
Mas lembro que no carnaval desse ano, fui para Ubatuba com as meninas do colégio e conheci vários garotos. Foram paixões de carnaval, amor que não sobre a serra... Quando encontrei o P, menti, dizendo que vovó tinha morrido.
No ano seguinte, minha mãe decidiu que iríamos visitar a tia Úrsula. Não quis de início; queria viajar com as amigas. Mas a mãe não deixou. Depois fiquei sabendo que meus primos também estariam lá e me animei para o baile dos adultos! Como eles eram mais velhos, não iriam querer ir na matinê do clube; de certo iriam no baile dos adultos, a noite  e quem sabe a mãe não deixaria eu ir? De fato, no começo, a mãe não deixou, apesar da vergonhosa birra que fiz. Só depois que o primo mais velho prometeu não tirar os olhos de mim foi que a mãe finalmente cedeu.
Os primos levaram alguns amigos e eu era a única menina da turma. Não me lembro de ter recebido tanta atenção em outra situação como naquela noite. Todos queriam dançaar comigo: os primos, os amigos dos primos, alguns garotos desconhecidos... 
Os meninos tinham levado uma garrafa de vodca escondida nas calcas largas e estavam bebendo misturado com refrigerante. Tomei um copo e fiquei ligeiramente bêbada. Nunca havia bebido antes e aquela sensação era delirante. Porem, mesmo inebriada por toda essa esfera favorável, enquanto pulava de um lado para o outro do salão agarrada aos meninos para não me desequilibrar, não deixei de procurar pelo P. Como não o encontrava, deduzi que ele devia ainda frequentar a matine. Foi quando o vi, encostado em uma pilastra do salão, olhando para mim, o meu toureiro. Fui até ele. Nos olhamos muito, sorrindo. Dessa vez, sem fantasias.
Não me lembro sobre o que falamos. Apenas lembro que ele ficou de me dizer algo e eu pedi para ele deixar para o carnaval do ano seguinte. Porem naquele ano, meu pai que era funcionário do Banco do Brasil, foi transferido para o Rio de Janeiro e eu nunca mais fui visitar a tia Úrsula. Passei a ir assistir as escolas de samba no sambódromo e nunca mais fui a bailes de carnaval.
Anos depois, já casada e com filhos, o encontrei no aeroporto. Ele não me reconheceu. Ele também estava diferente, mas eu o reconheci pelas mãos. Era carnaval. Eu estava chegando ao interior para visitar minha tia Úrsula que estava muito doente. Me lembro de ter perguntado ò que você ía me dizer naquele carnaval?`. Ele não lembrava. Naquele momento tive certeza de que minha paixão de carnaval sempre foi unilateral, pessoal e muito íntima. Eu pensava, enquanto olhava para ele:
-Será que digo como aqueles carnavais foram importantes para mim? Mas estava claro que era melhor me calar.
Logo depois disso, a tia Úrsula morreu e eu nunca mais voltei a cidade. Eu e meu toureiro nos perdemos na geografia impiedosa da vida e do tempo.
Eu me casei, fui muito feliz. Tivemos dois filhos lindos e saudáveis que sempre me deram orgulho e também me deram seis netos que tornam a solidão da velhice um pouco mais doce. Meu marido morreu há dez anos e desde então eu vivo sozinha nessa casa em companhia apenas das minhas memórias falhas e fantasias de velha caduca, no fim da vida, apenas esperando a morte chegar. Mas nunca esquecerei aqueles carnavais. Tampouco o esquecerei o P. E como no carnaval, toda fantasia é permitida, eu me concedo uma última dança com meu toureiro apaixonado...
Minha última dança, eu dedico a ele, Píndaro!
-Bandeira Branca Amor, não posso mais! Pela saudade que me invade, eu peço paz...


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