quinta-feira, 10 de novembro de 2011

BASTIDORES -- TRÊS EM DOIS

Segue a versão sob o ponto de vista de Píndaro. Boa leitura.

Tambor. Serpentina, confete, tambor. Apito, chocalho, poeira, gritos, mais tambor, mais gritos, gritos altos, cores embaçadas.  Multidão. O montinho de confete. Um pouco desfocada, calma, sim: lá está ela. Sorrindo um sorriso não daqueles abertos e cheios de dentes, mas daqueles sutis, como se eu não merecesse toda a alegria que ela continha dentro de si, entregue de bandeja num abrir de lábios. Seu nome era Janice.
Acordo. Alguns minutos para digerir o turbilhão de lembranças tão encrustadas em minha cabeça que mesmo o maior porre de conhaque não resolveria. Medidas paliativas nunca solucionaram os problemas daqueles que perderam as ilusões tão cedo na vida. O melhor remédio eu desconheço; talvez não queira encontrar. As memórias daqueles Carnavais longínquos são meu veneno e antídoto, enervam minha alma, mas quando desaparecem me devolvem ao mundo real como um soco no estômago.  Não sei se é obra da idade; provavelmente. Os anos são ainda mais implacáveis para aqueles que vivem do passado - seres humanos presos em uma época mágica onde tudo parece cercado de possibilidades infinitas e o tempo é mero capricho, de fato uma convenção, limitada aos que não conseguem viver o presente.  Irônico, eu falando de presente...
Começou pelo início, por mais óbvio que seja. Nem sempre é assim. Éramos crianças, descompromissadas e despidas de máscaras como toda criança deveria ser, pois eram os adultos que precisavam se esconder sob outras máscaras além das habituais do dia-a-dia.  Não me lembro precisamente qual era o meu costume, de certo era aquela fantasia surrada de tirolês que minha mãe insistia em me vestir nos primeiros Carnavais. E Janice... Janice era uma odalisca cintilante, cujos pequenos brilhos nos adornos da roupa formavam o complemento perfeito para os pequenos olhos amendoados da menina que me ajudou a arquitetar meu primeiro montinho de confete. Cúmplices sequestrando confetes do chão e das mãos de desavisados para montarmos nossa pequena montanha de papel picado. Para nós, pouco importava o tambor, as serpentinas, o apito e toda aquela multidão...
- Píndaro, lembro de contá-la.
- Píndaro? Que nome estranho, Janice respondeu.
Caminho até a cozinha, contemplo a janela durante breves segundos, me disponho a fazer o café.  Moro no Rio de Janeiro, a terra do Carnaval de sambódromo, nacionalmente televisionado, onde não havia espaço para montinhos de confete. Um Carnaval bem diferente daquele em que eu Janice nos encontrávamos, no clube de minha antiga cidade. Durante os meses do ano Janice era apenas um refujo na minha cabeça, um canto quente e acolhedor onde eu poderia me reconfortar de tudo o que me afligia. Ela morava em outra cidade e o que a trazia aos nossos carnavais eram visitas à tia, que por sua vez era sócia do clube onde os bailes aconteciam. Revê-la apenas em fevereiro era como abrir um presente fechado que ficara guardado durante muito tempo e se surpreender com o que encontrou: o tempo passava e de repente lá estava ela, com peitos, corpo de mocinha, a voz empostada, rindo alto e à vontade.
É a última lembrança que tenho de Janice. Eu, também crescido, espinhas na cara e cabelos mal penteados era um adolescente tolo tentando encontrar num copo de “guaraná clandestino” as ilusões roubadas pela saudade do meu amor de Carnaval. Já tinha 15 anos e não a encontrara no baile do ano anterior; mais tarde descobriria que o motivo fora o falecimento de sua avó. Janice, no entanto, já não era mais objeto exclusivo de meus sonhos e lamentações: linda e desenvolta, chamava a atenção de outros “tiroleses” do baile. Mas eu não era mais o tirolês. Depois de alguns bailes, a fantasia não me servia e eu virara o havaiano. Ela, a “Bávara tropical”, segundo a própria. Naquela noite, Marcelão, meu amigo a época, fornecia o que a priori eu chamava de “tapa-buracos d’alma”: gim para misturar com guaraná. Péssima ideia, coisa de moleque. Algumas horas mais tarde eu rebatizaria o drink de “desentupidor de almas”...
Bebendo descompassadamente e tentando me esquivar de Janice e suas irritantes companhias masculinas, lamentava por não ter coragem o suficiente para me declarar para ela. Cambaleante, resolvi me retirar do baile como um empregado demitido pelas portas do fundo. Quando estava, tortuosamente, alcançando a saída do clube, senti alguém me agarrando pelas mãos:
- Olha o que está tocando.
Era Janice, que viera em meu alcance, sorriso aberto e as trancinhas de bávara pendulando conforme seus pés tocavam o chão. Era “Bandeira Branca” que estava tocando, a clássica marchinha que não ouvimos mais nos carnavais contemporâneos, e que embalara a maioria dos meus bailes no clube com Janice. Senti meu rosto ferver, um tanto pela vergonha outro tanto pelo álcool, e a deixei me arrastar de volta ao salão. “Bandeira branca, amor, não posso mais pela saudade...”. Eu tentava me equilibrar e não pisar nos pés de Janice, mas meu estado alcoólico deplorável não ajudava. Respirei fundo e deixei a dança acontecer. Repousada sobre meus ombros, eu sentia sua respiração quente e suave me fazer carinho no pescoço, seu corpo colado ao meu formando uma única unidade, o tempo lentamente parando, as pessoas sumindo, a gritaria emudecendo, e as luzes se apagando. Naquele salão só havia espaço para mim, Janice e o nosso amor.
Durou o tempo em que a música tocou. Janice se despediu de mim e aquele foi o último Carnaval em que nos encontramos. E o último Carnaval ao qual eu fui, pelo resto da minha vida.
Eu já não frequentava mais aquela festa, nem voltava para minha cidade no interior. O Carnaval tem data para começar e terminar, e o fim da festa mais viva e colorida do ano acontece no dia da celebração da mortalidade. Entretanto, Janice não morreu pra mim. No meu Carnaval particular não havia espaço para a efemeridade, o que era transitório dentro de mim se tornava infinito, a nossa dança nunca terminou e a despedida, nunca aconteceu. Tentei inutilmente reencontrar Janice em outras mulheres, em outras odaliscas e bávaras tropicais, mas nunca fui feliz como naquela dança. O tirolês-havaiano hoje é um velho solitário de cabelos grisalho, saudoso de um passado distante...
Ligo o rádio. A estação faz uma homenagem às marchinhas clássicas de Carnaval. O que toca? “Bandeira branca, amor, não posso mais pela saudade...”. Dos meus lábios lentamente irrompe um sorriso, daqueles sutis.

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