Nos
manuais escolares, toda vez que alguém se refere à “Semana de 22” é feita uma
pequena lista de cinco nomes, com um esboço raso sobre os feitos dos detentores
ilustres deles. E então, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Menoti Del
Picchia, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral são apresentados ao leitor, que
quase sempre acaba percebendo ao longo do que lhe é informado que esse “Clube
dos Cinco” se resumiu a defensores de uma idéia...que não vingou.
Como disse um
crítico da época, Franklin de Oliveira, a Semana de Arte Moderna “foi uma revolução que não saiu dos salões.”
Infelizmente foi esse o enfoque que venceu e perdurou: e hoje, o evento que
marcou os Cem anos da Independência do Brasil é tido em conta de mera
curiosidade histórica. O que vai contra tudo o que já se fez neste país, na
defesa de sua “gloriosa jornada histórica” – pois o comum é um evento simples,
destituído de complexidades ou salamaleques, ganhar ares de “universal”,
“grandioso”.
Assim foi com o afamado Grito da Independência, que viu um D.
Pedro com problemas intestinais, montado em uma mula baia, decidir romper laços
com a Corte Portuguesa, acuado, apenas três meses após pedir ao pai – entre
lamúrias e lágrimas – que pudesse abandonar a colônia, com seus aborrecimentos
presentes...e “dissabores futuros maiores ainda”.
Daí que é difícil compreender porque diminuem o valor daqueles dias de Fevereiro de 1922. E o segredo está aí: sua importância não nasce daqueles sete dias, mas dos frutos que puderam surgir a partir das reflexões suscitadas ali. Esse evento foi a primeira tentativa pública, neste país, na qual a intelectualidade procurou compartilhar com a sociedade sua visão do que deveria ser um Brasil Moderno, culturalmente falando.
Daí que é difícil compreender porque diminuem o valor daqueles dias de Fevereiro de 1922. E o segredo está aí: sua importância não nasce daqueles sete dias, mas dos frutos que puderam surgir a partir das reflexões suscitadas ali. Esse evento foi a primeira tentativa pública, neste país, na qual a intelectualidade procurou compartilhar com a sociedade sua visão do que deveria ser um Brasil Moderno, culturalmente falando.
E aqui importa definirmos com
exatidão o que esse “culturalmente” trazia em seu bojo na época. Entender a Semana
de arte Moderna implica em, antes de mais nada, explicar o fenômeno do progresso cultural brasileiro. E o Brasil,
como muitos países, está sujeito a uma irrefutável constatação: o
desenvolvimento de um país não ocorre aos solavancos – tudo é paulatino,
gradativo. A própria estética do
Modernismo, como estilo artístico, surgiu após toda uma série de movimentos ímpares
– cada um tentando trazer à lume um aspecto específico dessa Visão da
“modernidade.
O início do século XX deu curso a um fluxo de iniciativas criativas e intensas da interação entre Arte e Sociedade:
O início do século XX deu curso a um fluxo de iniciativas criativas e intensas da interação entre Arte e Sociedade:
Fauvismo (1905), expressionismo (1906),
cubismo (1907), futurismo (1909), raionismo (1911), orfismo (1912),
cubo-futurismo (1912), suprematismo (1912), nãoobjetivismo (1913), vorticismo
(1913), imaginismo (1914), dadaísmo (1916), neoplasticismo (1917), ultraísmo (1918),
bauhaus (1919), espírito-novo (1920), pintura metafísica (1920), musicalismo
(1920), a Neue Sachlichkeit (1922), manifesto dos pintores mexicanos
(Siqueiros, Orozco, Rivera - 1922) e nova objetividade (1922).
Uma interação que acaba refletindo
uma grande verdade: mudando o pensamento, tudo o mais acompanhará essa mudança.
O delicado na questão, é que para o pensamento de um povo mudar, é preciso que
haja um cenário favorável a isso. E nenhum cenário social surge de um dia para
o outro -- o normal é que um país vá “amadurecendo” parte por parte...muitas
vezes o que primeiro muda são as condições políticas, logo acompanhadas pela reciclagem
da cultura dominante...que, por sua vez, irá forçar a transformação do aspecto
econômico. Com o Brasil foi assim:
alguns grupos tomaram para si a tarefa de atiçar esse progresso o máximo que
conseguissem, de todas as formas possíveis --
infelizmente (ou não) este país não faz de ideologias fogo em rastilho
de pólvora. Novas ideias têm de ser enxertadas com esmero e cuidado no terreno
pantanoso dos tradicionalismos, com seus mecanismos servis aos caprichos das
elites.
As
tentativas que tiveram início em Fevereiro de 1922 estavam sendo ensaiadas a
muito tempo, e visavam construir um “sentido de Nação” na mente dos brasileiros.
Uma identidade comum a todos os que viviam sob a égide do Cruzeiro do Sul. A fórmula é simples: uma Nação é o produto de
certos elementos psíquicos, agrupados em torno de símbolos capazes de estimular
esses elementos ao longo das gerações, ou de promover a transformação desses
elementos respeitando-se as tradições constituídas pelos fundadores do país. E,
em que pese o contrário para alguns, a muito tempo é consenso que aqui só se
manifestaram os elementos psíquicos errados – produzindo populações fadadas a
fracassar socialmente.
Desde a Primeira República o debate sobre a Identidade Nacional agitava a opinião pública. Creditava-se ao sucesso político do Velho Mundo o desenvolvimento científico decorrente de uma natural estima pela sofisticação cultural. Seu “caráter europeu” era mais propenso ao encanto pelas grandes coisas. Coisa que já era rara entre “as gentes” do Brasil colonial – Dom João, ao trazer a Corte para o Rio de Janeiro, também trouxe esparsa entre muitos navios toda a Real Biblioteca de Portugal – com mais de 60 mil volumes, e sem qualquer leitor em terras tupiniquins, estando quase sempre às moscas.
Desde a Primeira República o debate sobre a Identidade Nacional agitava a opinião pública. Creditava-se ao sucesso político do Velho Mundo o desenvolvimento científico decorrente de uma natural estima pela sofisticação cultural. Seu “caráter europeu” era mais propenso ao encanto pelas grandes coisas. Coisa que já era rara entre “as gentes” do Brasil colonial – Dom João, ao trazer a Corte para o Rio de Janeiro, também trouxe esparsa entre muitos navios toda a Real Biblioteca de Portugal – com mais de 60 mil volumes, e sem qualquer leitor em terras tupiniquins, estando quase sempre às moscas.
Daí
que era comum as discussões do período sugerirem que a solução para o Brasil
era a troca do povo – para que se evitasse um “determinismo racial e
climático”, num território tão grande e sujeito a zonas climáticas tão diferentes
umas das outras. Era preciso acabar com isso: encontrar algo que servisse de
catalisador de mudanças na mentalidade nacional.
Era
preciso encontrar “o símbolo” nacional. As primeiras e insípidas tentativas
cuidavam de revelar o “índio”, idealizado em sua pureza e intocado pelas
mazelas do mundo – mas logo esse tema iria se esgotar, e as atenções se
voltariam para o Caboclo. Ambos, índio e caboclo, aparentavam possuir uma bondade
característica: eram “cooperativos”, um dos elementos-chave na construção de
uma Nação empreendedora. O palco agora era do Sertanejo. Com Monteiro Lobato se
inicia esse processo intencional de
construção ideológica de uma Identidade Nacional, e é o Jeca Tatu, essa
personagem preguiçosa e indolente, quem aglutinará esses esforços. A
intelectualidade da época acreditava que os menos favorecidos não só estavam
excluídos do processo “evolucionário-social”, longe dos mais básicos confortos
materiais, como por conta mesmo dessa situação precária estavam condenados à
própria miséria...uma vez que ela lhes retirava os recursos de saúde física e
intelectual, necessários à saída desse círculo vicioso.
E o Jeca Tatu
demonstrava exatamente isso: se assim, tão desengonçado e livre de
preocupações, o cidadão podia ser grandioso – quão maior não teria sido isento
de suas limitações ? Ao contrário de outras personagens clássicas no gênero
“sábio-idiota”, como o lendário Da Yu da
mitologia chinesa, ou o enigmático Nasrudin,
das parábolas sufis, o nosso brasileiríssimo Jeca não estava completo – era,
apesar de sua estatura literária e artística, alguém aquém de seu potencial verdadeiro.
Apesar
de não se poder dizer que havia alguém influenciando a ocorrência dos fatos, houve
uma certa coerência nos acontecimentos para que um projeto “social” de “cura”
da população marginalizada consertasse essa ausência de potencial. Por incrível
que pareça, os fatos foram se encadeando uns nos outros de modo a tornar isso
possível:
a) primeiro tentou-se criar o mito dos
Bandeirantes como símbolo da pujança de São Paulo e de estímulo do foco no
Futuro (os livros didáticos publicados entre 1894 e 2006 retratam os
Bandeirantes como heróis corajosos, no intuito de reafirmar o poder dos cafeicultores
paulistas que com o fim da República, em 1889, se tornaram a elite política e
econômica do país até fins de1920);
b) em seguida, surgiu o movimento sanitarista
(política de saúde promovida por Carlos Chagas, de 1919 a 1926);
c) Mário de Andrade iniciava um projeto
ambicioso: levar cultura às camadas menos favorecidas da população, para fazer
com que o povo descubrisse a si mesmo ao saber das coisas do Brasil (começa em
1939 a Enciclopédia Brasileira que, graças à morte do idealizador em 1945, só
veio a ser concluída em 2009, com 1200 páginas, em cinco volumes);
d) no Rio de Janeiro nascia a manifestação
popular tão apreciada pelos cultores dessa mudança: o Samba, carioca e nascido
graças ao esforço do grupo boêmio da Rua do Ouvidor (intelectuais que estimulavam
os novos experimentos musicais – dos quais saiu o magnífico Samba de Noel
Rosa).
Estava recriado o imaginário nacional – novos símbolos
tinham aparecido para dar suporte a esse “caráter psíquico” tão desejado pela
intelectualidade. Mas ainda restava o
golpe de misericórdia. E ele veio em
1911. Na revista Pirralho as
composições de Juó Bananare
satirizavam textos consagrados da literatura nacional. O estilo “macarrônico”
do pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado encontrou guarida para tal façanha
nessa publicação fundada por Oswald de Andrade e Emílio Menezes. Não bastava
afrontar os velhos conceitos, com o patrocínio do entusiasmo paulista: era
preciso romper com os elos antiquados que a própria São Paulo tinha com o país
– e nada melhor para isso do que se valer do “italianismo” quase onipresente na
locomotiva do Brasil.
Não
só nas trincheiras pátrias acontecia essa batalha: na Europa das artes
esculpidas ao gosto do classicismo milenar o Futurismo e o Cubismo floresciam
sem restrições, inspirando certas mentes visionárias. Inconformado com os
resultados de suas primeiras tentativas, Oswald de Andrade traria (1912) do
Velho Mundo essas novidades, aliadas ao inusitado Verso Livre. A exposição de
pintura expressionista do russo Lasar Segall em 1913... somada à tentativa,
também expressionista de Anita Malfatti, em 1914, abriram caminho por entre os
entraves da sensibilidade artística do público brasileiro... solapando o
terreno para os promissores esforços de 1917. Nesse ano Mário de Andrade, Manuel
Bandeira, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia apresentam inovações nas
letras... e Anita volta à carga, desta vez merecendo a devida atenção da
crítica.
Em uníssono, o grande público valia-se de um porta-voz
impetuoso...ninguém menos que o próprio Monteiro Lobato:
“Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as
coisas e em conseqüência fazem arte pura (...) A outra espécie é formada dos
que vêem anormalmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob
a sugestão estrábica excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos
os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao
nascedouro. Estrelas cadentes brilham um instante, as mais das vezes com a luz
do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento...”
Em certa medida, ele estava certo ao
ser rígido, pois a muito tempo a intelectualidade tentava implementar alguma
“brasilidade” nas referências culturais do país...e Anita, que trazia consigo
toda a influência da vanguarda européia, aos olhos de Lobato não ajudava em
nada nesse plantio. Mas, como se sabe em agricultura...às vezes é necessário
revolver bem o terreno para que as sementes possam encontrar aí sua guarida.
O impacto, antes comedido, em surdo
crescendo, agora manifestava-se explicitamente – inclusive com o apoio da
natureza. Os preparativos para a Semana estavam no início, artistas e obras
encontrariam seu perigeu no Teatro Municipal de São Paulo... e o escritor Graça
Aranha, hospedado no Grande Hotel da
Rotisserie Sportsman, para organizar os afazeres, viu-se de súbito presa de
uma força telúrica respeitável – na madrugada do dia 27 de Janeiro de 1922, um
abalo sísmico com epicentro em Mogi Guaçu, chegou a 5,1 graus na escala
Richter, abalando a Paulicéia Desvairada. O impacto estava pronto,
definitivamente completo – após 58 abalos sísmicos, desde que a contagem
oficial começou, em 1724.
Outros
abalos iriam se somar a esses, de 11 a 18 de Fevereiro de 1922. Abalar era a
palavra de ordem nesse evento – uma “semana” de oito dias, nada menos que 3
dias-apresentações, quase 30 participantes engajados em criticar o
tradicionalismo mas se apresentando com o patrocínio dos Barões do Café, a
exposição de idéias inteiras mediante leituras pela metade...além do incrível
fato de ser um acontecimento com ideais revolucionários, extremamente contrário
ao engessamento causado pelo Parnasianismo às artes e à literatura, porém
pretendendo marcar época no templo do Classicismo: o Teatro Municipal de São
Paulo.
A
ironia é que todo o empreendimento da intelectualidade brasileira, que estava
sendo posto em xeque naquela semana, teve um “grand finale” às avessas – tudo
apontava para o clima de incompreensão que tomou conta da platéia. Parecia um
projeto feito para naufragar...como se aquela Semana fosse um barco construído
para afundar mesmo. Em suas memórias, Di Cavalcanti confirmaria mais tarde essa
idéia: tendo por base a Semana de
Deauville, na França, ele próprio sugeriria a Paulo Prado a realização de
"uma semana de escândalos
literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".
Ou seja, parecia que o propósito da coisa toda era causar impacto – e só.
Mas...será que foi realmente essa a intenção ?
Nós da Brandstorm acreditamos que não.
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