sábado, 25 de maio de 2013

VITÓRIA MORAL E VITÓRIA INVISÍVEL

1685 -- Johan Sebastian Bach nascia na Turíngia, vindo a falecer praticamente cego em 1750, em um relativo anonimato fora dos portões do local onde residia --  apesar de compor mais de 1100 peças...entre oratórios, concertos, cantatas, paixões... obras-primas da música sacra. Ele revolucionou a História da Música ao desagregar a música do canto e da dança -- e com isso permitiu à música adquirir vida própria.  Foi preciso que um cidadão anônimo com as iniciais BWN compilasse toda a produção desse compositor barroco para que somente em 1829 Félix Mendelssohn ressuscitasse Bach para o mundo ao apresentar sua "Paixão Segundo São Matheus". O ritmo e a melodia tão bem tratados por Bach influenciaram desde os compositores modernos, como Villa-Lobos, até bandas de Rock Progressivo, como a banda inglesa Procol Harum... em sua faixa "A Whiter Shade of Pale", inspirada na "Tocata e Fuga em Ré menor para Órgão".

1928 -- Bardoli, Índia: Mahatma Gandhi organiza uma campanha de Satyagraha contra o aumento de 22% feito pelo governo britânico. As pessoas se recusaram a pagar esses impostos, sofrendo represálias estatais. Satyagraha significa "força da verdade", simbolizando a desobediência civil pautada na evidência óbvia de atos injustos praticados por governos ou governantes contra a população -- como uma forma de "revide" pacífico, baseado na não-violência, ou ahimsa, "sem dor". Para um praticante da Satyagraha basta a Verdade como apoio nas reivindicações sociais: ela por sí só tem a força centrípeta necessária para dar vazão a mudanças na atitude dos opressores. Após vários meses de resistência pacífica, o governo britânico não teve outra saída a não ser libertar os prisioneiros, devolver as terras e propriedades confiscadas e cancelar os impostos. Décadas mais tarde a Inglaterra abandonaria sua pretensão de dominar a Índia em definitivo. 

1984 -- Maratona Feminina de Los Angeles: a suíça Gabriele Andersen, de 39 anos, chega completamente extenuada à linha de chegada. Seu esgotamento não é só explícito: é heróico -- sua persistência em cumprir com o percurso até o fim a tornou a "vencedora moral" da competição. 


Estes casos, entre muitos outros, nos incentivam a refletir sobre dois tipos incomuns de "vitória": a Moral e a Invisível. E qual a diferença ? Simples: a conclusão. 

Se Bach tivesse ficado no anonimato...sua vitória teria sido apenas moral. 
Se Gandhi não tivesse realizado uma "revolução silenciosa"... seria somente possuidor de "metade" do feito heróico -- mas como o processo a que deu início chegou a se consolidar...então sua vitória foi invisível: pois seus contemporâneos ainda não tinham olhos treinados para enxergarem os mecanismos de mudança em ação, por baixo da aparente fragilidade de seus métodos. 

Nem todas as vitórias são reais... nem todas as derrotas são derrotas. 

E isso deve ficar claro quando nos referimos à Semana de Arte Moderna.

Eles venceram: o Clube dos Cinco triunfou.

Quando se pretende alterar a concepção cultural de um povo deve-se acabar com os alicerces carcomidos... ou apresentar novas opções: novos alicerces. E, neste caso, é claro que comparações são inúteis. O novo não se encaixa no vão deixado pelo velho -- daí que julgar essa "diferença" como algo prejudicial é ilógico. Deve-se entender o novo dentro do contexto inusitado que ele traz consigo. 

Por isso seu valor é intrínseco.

Esse foi o grande desafio que a Agência Brandstorm encontrou quando o MIX do 4º Semestre teve início: as idéias formuladas, as questões levantadas... os ideais defendidos pelos Modernistas de 1922 indicavam a necessidade de uma nova abordagem. Em que pese o temperamento de Oswald de Andrade, extrovertido e ávido por uma platéia particular, a Filosofia que o Clube dos Cinco tentava difundir era frontalmente contrária a holofotes. A própria "antropofagia", movimento inaugurado pela dupla Tarsila-Oswald, reconhecia que a "originalidade" basicamente não existe quando se fala em criações culturais: tudo é um amálgama de tudo.

Hiperbolizar o próprio valor seria não só errado, como ingênuo, segundo os Modernistas -- o verdadeiro artista serve como um intermediário entre a arte que ainda não modificou...e a arte que alterou com sua influência direta. O importante aqui é a mensagem que se tenta introduzir nessa "mistura": ela deve ser apreendida em sua total intensidade pelo espectador da obra. Daí o recurso empregado pelo poema OS SAPOS: aparentemente ilógico, prende a atenção do ouvinte justamente pela abordagem inusitada... justapondo um contexto novo ao contexto já consagrado pelo classicismo. Seu sentido é o sentido que a ele se dá: as obras modernistas primam pela experimentação delas -- são oportunidades para que essa mensagem seja vivenciada. Ou seja, é preciso a participação do espectador: ele altera a obra ao entrar em contato com ela.

Em suma, estas eram as condições nas quais a Brandstorm deveria se movimentar, produzindo um espaço onde a SEMANA DE ARTE MODERNA pudesse ser mais uma vez vivificada. 

Mas como elaborar isso e ao mesmo tempo ser fiel à Filosofia modernista ? 

A resposta estava com Tarsila do Amaral.  

Existem muitas “Tarsilas” dentro daquela cuja figura ficou ligada para sempre à Semana de Arte Moderna de 1922: cada  uma a “fatia” da mulher inteira, completa, que tanta admiração causou no que fez, no que disse, no que decidiu...no que se tornou. Mas, no âmbito do universo modernista, Tarsila do Amaral também se tornara um “híbrido” – metade ela mesma, a outra metade parte Oswald de Andrade; ficando ele igualmente marcado por uma “meia-identidade”. E ambos, no cenário da efervescente São Paulo da década de 20, ficaram conhecidos como um só ser: Tarsiwald...como Mario de Andrade apelidara o casal. 

A Tarsila-intelectual encantava multidões de admiradores com a beleza de sua alma, como vimos. E, de uma certa forma, talvez pudesse estar alguns centímetros acima de Oswald em estatura não só intelectual, mas artística também.

A Tarsila-pintora era uma artista plástica de reconhecida importância no cenário nacional -- sua carreira artística, composta de seis fases (de Vanguarda, Impressionista, a do Pau-Brasil, a Antropofágica, a que englobava Temas Sociais e a Neo Pau-Brasil) registrou a adolescência da história artística tipicamente brasileira

Mario de Andrade, em artigo para o Diário Nacional, ressalta:

"Por dois lados Tarsila é uma das figuras mais importantes na evolução da pintura nacional. Pela primeira vez com ela terminou a confusão entre nacionalizar a pintura e pintar o nacional. [...] Tarsila ajuntou a esse pintoresco do assunto, uma verticalidade nova que consistia em buscar, dentro do fenômeno humano do país as suas tradições profundas de cores e de formas, especialmente circunscritas até então nas obras do povo e nas manifestações objetivas da nossa religiosidade. [...] Estes são os maiores méritos da maior pintora do nosso Modernismo. Aprofundou a nacionalidade da nossa pintura, ajuntando ao pitoresco brasileiro, as cores e formas do nosso humano tradicional ao mesmo tempo que converteu o assunto brasileiro a uma expressão de plástica."     


O próprio Oswald de Andrade reforçaria essa concepção sobre Tarsila, ao escrever um artigo (1945) em “Aspectos da pintura através de Marco Zero”:

"Se me perguntassem qual o filão original com que o Brasil contribui para este novo Renascimento que indica a renovação da própria vida, eu apontaria a arte de Tarsila. Ela criou a pintura “pau-brasil”. Se nós, modernistas de 22, anunciamos uma poesia de exportação, ela foi quem ilustrou essa fase de apresentação de materiais, plasticizada por Di Cavalcanti, mestre de Portinari. Foi ela quem deu, afinal, as primeiras medidas de nosso bárbaro sonho na Antropofagia de suas telas da segunda fase,“A Negra”, “Abaporu”, e no gigantismo com que hoje renova seu esplêndido apogeu."


A Agência Brandstorm seguiu a trajetória de Tarsila, e percebeu que podia fazer de uma de suas obras mais características -- o quadro "São Paulo 135831" -- o objeto do Espaço de apresentação da Semana de 22. E fazê-lo de forma a ser fiel àquilo que o Clube dos Cinco propunha.



Assim, os trabalhos concentraram-se em algo bem "modernista": transmitir ao espectador a experiência de estar dentro do quadro ! De fazer parte dele ! 




E como não podia deixar de ser, só colocar o espectador dentro da pintura não bastava -- era preciso fazer esse espectador interagir com a Mensagem modernista por trás dela. O que foi feito com o uso de um quebra-cabeças, que era ao mesmo tempo a Logomarca da apresentação. Para honrar a tradição artística de Tarsila, essa Logomarca foi concebida e pintada à mão por uma das Brands mais talentosas: Jessica Rojas. 



O espírito da obra pedia mais: e nada melhor do que os próprios Oswald e Tarsila a acompanhar os visitantes nesse passeio onírico. Bruno Victor e Mirian Diehl  representaram os ilustres personagens.



A característica "artesanal" do cenário montado reflete a antropofagia mesma, naquilo que ela tem de "contato direto com a terra" -- sem firulas, nem enfeites que tornem essa relação artificial. 

Assim, a Agência Brandstorm defendeu com honra e orgulho um conceito e uma filosofia a muito esquecidos: a de que nada deve estar acima da coerência. 

Se quando no Teatro Municipal o poeta Ronald de Carvalho leu OS SAPOS, de Manuel Bandeira, não houve aplausos... eles vieram em grande número depois.

E com mais vigor.

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